O Cofre da Vergonha
ou a Arte de Roubar com Gravata
Dotação Provisional
O Cofre da Vergonha ou a Arte de Roubar com Gravata
Em janeiro de 2014, enquanto Portugal ainda lambia as feridas do assalto institucional perpetrado sob a capa de ajustamento, eis que surge Manuela Ferreira Leite, não como a madona arrependida do cavaquismo tardio, mas como a voz engasgada da consciência fiscal seletiva.
No púlpito televisivo da TVI24, no programa Política Mesmo, uma ironia involuntária no título, a ex-ministra das Finanças lá foi despejando verdades como quem revela que o imperador vai nu, depois de lhe ter ajudado a escolher o fraque.
Ferreira Leite denunciava, com aquele ar de freira ultrajada com a promiscuidade alheia, a existência de uma “dotação provisional” de 533 milhões de euros no Orçamento de Estado de 2014.
Para os comuns mortais, ou seja, os que apanham autocarros, contam moedas no fim do mês e veem reformas amputadas com cortes cirúrgicos à dignidade, tratava-se de um cofre escondido atrás da estante da austeridade. Segundo a nossa dama de ferro fiscal, tal verba seria mais do que suficiente para cobrir as inconstitucionalidades declaradas pelo Tribunal Constitucional.
Mas o governo de então, esse colosso de virtudes liberais com alma de capataz, optava por cortar nas pensões, como quem rega um jardim com gasolina.
Pedro Passos Coelho, o primeiro-ministro de olhar vago e discurso de PowerPoint, e Paulo Portas, o eterno contorcionista político, assobiavam para o lado, fingindo que 533 milhões eram um número místico, reservado a oráculos tecnocráticos e não à justiça social.
"O fundo de maneio devia cobri-los", dizia Ferreira Leite, como quem dá uma receita de bolo à ministra das Finanças, e com que leveza e subtileza ela expunha o truque, bastava uma canetada, uma delegação de competências, e voilá, os cortes morriam no papel.
“Resolvia-se em 10 minutos”, dizia ela, claro, tal como se resolvia em 10 minutos o problema da fome no mundo, se houvesse vontade, mas há quem prefira pagar consultorias a preços de helicóptero.
Mas a verdadeira obra-prima do cinismo foi a comparação com o seu próprio mandato, quando o “fundo de maneio” era de 150 milhões, cuidadosamente usado para “aumentos dos funcionários”.
A sério? Alguém ainda se lembra de aumentos salariais no tempo em que Ferreira Leite mandava nos cofres públicos? Ou será que confunde aumentos com indemnizações douradas para boys e assessores de lapela dourada?
E a oposição? A oposição, em vez de pegar na denúncia e fazer dela uma bandeira, preferiu encenar uma peça de teatro menor.
O PS, a viver a sua eterna crise de identidade entre o socialismo de salão e o pragmatismo de cartilha neoliberal, limitou-se a uns quantos murmúrios e indignações em comissões parlamentares.
O PCP gritou no deserto, o Bloco fez conferências de imprensa com powerpoints moralistas, mas ninguém, absolutamente ninguém, agarrou nos 533 milhões escondidos e os transformou numa causa nacional.
O resultado foi um país anestesiado, onde se cortavam pensões em nome de uma necessidade que afinal era opcional, onde se aplicava austeridade com a mesma lógica com que se aplica perfume: para mascarar o cheiro da má gestão.
Em suma, o episódio da dotação provisional de 2014 foi uma pequena epifania de como se governa um país como quem gere um condomínio de luxo, com contas opacas, prioridades obscenas e uma indiferença brutal pelo velho, pelo pobre e pelo inútil ao mercado.
E Ferreira Leite, essa santa da ortodoxia orçamental, apareceu nesse momento como a Cassandra neoliberal, não por arrependimento, mas porque alguém estava a gastar o dinheiro que ela teria preferido cortar com mais classe.
Um país sério teria feito desta denúncia um escândalo nacional. Portugal fez dela uma nota de rodapé, e agora, colocam Barrabás no templo (Paços Coelho), esperando que Cristo (o Povo), volte outra vez à terra, para o crucificaram de novo.