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Barreiro 2050, A distopia cor-de-rosa segundo Rui Braga & Companhia
Imagine um universo paralelo, um Barreiro onde os prédios se reabilitam sozinhos, os esgotos no deixam de cheirar por decreto e as pessoas participam entusiasticamente em reuniões públicas sem sequer pensar em atirar cadeiras.
É este o mundo maravilhoso que nos é servido, com guardanapo ao colo e sorriso de powerpoint, por Rui Braga, vice-presidente da Câmara Municipal do Barreiro e, ao que tudo indica, autor de uma novela de ficção política com o título provisório, “Como fazer parecer que se faz sem ter de fazer de facto”.
O video-texto que protagoniza, é uma espécie de soufflé urbanístico temperado com as palavras “incentivo”, “reabilitação”, “património” e “dinamização”, tudo polvilhado com aquele entusiasmo tipicamente tecnocrático de quem passou demasiado tempo fechado num gabinete com gráficos, mas sem janelas.
Vamos por partes, como quem corta uma rotunda nova em três fases para adjudicar mais vezes.
Rui Braga explica que a câmara oferece “benefícios fiscais”, “apoio técnico” e até “linhas de crédito facilitadas”, isto, claro, se o privado em causa for suficientemente masoquista para enfrentar a burocracia camarária e sobreviver a uma junta médica depois de tentar perceber onde começa o licenciamento e termina o labirinto kafkaiano de requerimentos.
O Barreiro dá apoio técnico, sim, desde que traga lanche de casa e duas cópias autenticadas da certidão de óbito do último arquiteto que se atreveu a mexer num prédio antigo da CUF.
Há uma ternura quase poética na forma como se fala das fábricas desativadas, porque podiam ser espaços de cowork, habitação ou comércio, diz Rui Braga, com a candura de quem nunca visitou o interior de uma dessas ruínas sem máscara de amianto.
O património industrial do Barreiro é tão valorizado que alguns edifícios já estão no estágio avançado da arqueologia urbana, onde só faltam os guias turísticos em toga a explicar aos romanos como funcionava uma linha de enlatados.
Nada como abandonar o centro histórico para fazer um novo “centro”, com história local, mas fabricada, que será um bocadinho como abrir uma loja de produtos regionais dentro do IKEA, pode cheirar a enchido, mas sabe a esferovite.
A deslocação dos serviços da câmara para o Fórum Barreiro, aquele centro comercial com mais eco que lojas, justificada com a frase “redistribuição da dinâmica”, como quem tira um sofá velho da sala e o enfia na arrecadação, esperando que passe por novo, é o equivalente urbanístico a esconder a desorganização debaixo do tapete, mas com uma grua.
Traduzindo, já que não conseguimos animar o centro, vamos matá-lo de vez e ver se a população segue os papéis para outro lado
O Balcão Único, essa entidade mística, que já habitou mais sítios que um ciganito em Erasmus, agora foi ancorar no Fórum, talvez na esperança de que os munícipes, ao irem tirar uma certidão, comprem umas cuecas na Tezenis e assim salvem a economia local.
Na prática, “redistribuir a dinâmica” significa que vamos tirar os serviços de onde as pessoas estão e enfiá-los, e onde ninguém quer ir, para ver se alguém, com sorte, tropeça neles, entre uma loja de telemóveis e uma placa de "Brevemente, nova abertura" que já está lá desde 2014.
Diz-se que as obras do Pólis foram concluídas. Diz-se, com o mesmo entusiasmo com que se diz que o Pai Natal existe, ou que o Barreiro vai ter um hotel de cinco estrelas, com fé, suor e ausência total de evidência empírica.
A lista de atividades para os “novos” espaços do Pólis parece saída de um brainstorming feito entre um vereador com PowerPoint e um promotor imobiliário com um mapa do Monopoly. Parques infantis, esplanadas, bicicletas enferrujadas chamadas “equipamento de fitness, e de tempos a tempos, uma Feira da Bagageira, em que a Câmara não mete a estopa.
Sanitários públicos, é que por enquanto não existem, existe um estudo, pois estão previstos, o que no Barreiro significa que podem vir a existir algures entre a canonização do Rui Rio e o regresso da CP ao século XXI.
O que acontece no Barreiro, onde até o Robin dos Bosques municipal veste fato e gravata e, em vez de roubar aos ricos para dar aos pobres, cede aos privados para que estes possam depois cobrar aos pobres, com multibanco.
A mais recente demonstração de generosidade camarária é digna de constar num manual de "Como Privatizar com um Sorriso nos Lábios e Dinheiro dos Outros no Bolso". Terrenos públicos, repita-se com gosto e subtileza, "pú-bli-cos", são entregues a privados com uma reverência que faria corar um vassalo medieval".
E para quê? Para construírem “unidades hospitalares” ou “afins”, ou seja, hospitais e clínicas, onde se paga à entrada, à saída e, se calhar, por pensar em marcar consulta.
Tudo isto feito com uma subtileza estratégica, para que estes privados não gastam um cêntimo,
E o que dizer na formação dos técnicos, que vão servir esses privados da saúde, para quê investir, questionam-se, quando o Estado já o fez por eles?
Os profissionais fresquinhos das universidades públicas, estagiam nas unidades de saúde do SNS, e saem diretamente para clínicas e hospitais privados, com salários reluzentes, como as promessas eleitorais, mas com mais probabilidade de serem cumpridas.
O Serviço Nacional de Saúde, coitado, fica a olhar para este esquema, como um clube amador a ver os seus melhores jogadores assinarem por clubes ricos, que treinam no campo que ele próprio pagou, e ainda têm de aplaudir.
Afinal, é bom para o concelho, claro que é, tal como é bom deixar a chave de casa ao assaltante para ele não ter de arrombar a porta.
Enfim, no Barreiro, até a saúde virou negócio, e o negócio está de boa saúde, já os munícipes, esses, esperam sentados, se houver onde.
É uma espécie de privatização zen, não se vende, cede-se com amor, o cidadão perde o espaço, mas ganha uma unidade de saúde privada.
A solução para os problemas de esgotos nas AUGI, é simples, basta deixar que o cheiro resolva por si, segundo o evangelho segundo de São Rui Braga, o caminho faz-se com redes de saneamento. Eventualmente, fossas menos medievais, quiçá e muita, muita sensibilização, porque, como se sabe, o principal problema das casas sem saneamento básico não é a falta de infraestrutura, é a falta de consciência ambiental dos moradores que, ingratos, não conseguem encontrar poesia na lama.
Claro que tudo isto está “em fase de estudo”, esse estado etéreo onde projetos públicos vão hibernar até que surja um momento oportuno, tipo, vá, um ciclo eleitoral.
O cronograma, esse animal mitológico que apenas se avista em PowerPoints, com cliparts de arco-íris, é descrito como “complexo”, por outras palavras, não há datas, não há prazos, não há pressa, mas há sempre esperança de inaugurar qualquer coisa simbólica, com uma fita para cortar e uma selfie ou vídeo para postar.
O que Rui Braga nos oferece é uma política de saneamento baseada em três pilares, fé, propaganda e odor persistente, enquanto isso, os residentes das AUGI continuam a viver entre o balde e a promessa, num território onde o esgoto é clandestino, mas o abandono é institucionalizado.
Ou seja, como tantas outras, uma excelente, deslumbrante e verdadeira obra de engenharia política.
A solução para os problemas de esgoto nas AUGI, é só uma, esperar.
Rui Braga propõe a construção de redes, melhoria de fossas, sensibilização dos moradores, tudo ótimo, tudo certo, tudo “em fase de estudo”. O cronograma, esse mito que alimenta gerações de técnicos municipais, é “complexo”, traduzindo, “não sei quando, nem se, mas vamos lá ver se dá para meter uma placa antes das eleições.”
A participação cidadã, no Barreiro, é aquele outro espetáculo de ilusionismo político onde todos fingem que a população tem voz, mas ninguém lhe dá microfone.
É a cereja podre, claro, no topo do bolo de betão. Se existirem inquéritos, que dúvido, devem ir direitinhos para o arquivo morto. As sessões públicas, cuidadosamente coreografadas para parecerem debates, com plataformas online que servem sobretudo para demonstrar, que a internet e a mediocridade dos intervenientes, sem excepção, também pode ser o deserto e afastamento da população, que prima pela ausência, face ao desinteresse do debate, pela baixa qualidade dos intervenientes
O entusiasmo municipal pela escuta ativa é comovente e constangedor, ouvem tudo com muita atenção, e depois fazem exatamente o que já estava decidido há seis anos, com powerpoints reciclados e promessas com prazo de validade anterior à pandemia.
A participação é sempre bem-vinda, mas desde que seja passiva, breve e não altere nada, transformando-se num triste exercício da democracia, mas em cinema mudo.