O Circo das Análises
A Piscina de Mijo onde Ninguém Se Afoga
Vivemos tempos gloriosos, a democracia, esse velho teatro de sombras, atingiu a sua fase mais sofisticada, a análise política transformada num campeonato escolar de ginástica artística. A pré-campanha eleitoral, outrora ocasião para se discutir o rumo de um país, é hoje um desfile cacofónico de vaidades empoleiradas em púlpitos de acrílico, iluminadas por holofotes e alimentadas a likes.
A pré-campanha eleitoral portuguesa entrou oficialmente na sua fase terminal, que dá pelo nome de indigência analítica. O debate político, enquanto exercício de confronto ideológico ou apresentação de propostas, já não existe, foi substituído por uma espécie de Festival Eurovisão da Carinha Laroca e da Frase Feita, onde o que conta não é o que se diz, é o tom, o timbre, o sorriso estudado e o número de vezes que se interrompeu o adversário.
A culpa, ora se atribui às televisões, ou, melhor dizendo, dos debates televisivos, esses combates de boxe com luvas de veludo, onde cada candidato tenta não parecer demasiado burro enquanto sorri para a câmara com a mesma convicção de um apresentador de televendas. Mas a verdadeira culpa, sejamos justos, não é dos debates em si, mas da fauna que se lhes segue, que dá pelo nome de comentário político.
E ainda os microfones dos debates não arrefeceram, abrem-se os portões do carnaval informativo. As santas romarias de comentadores multiplicam-se como cogumelos num bosque húmido de mediocridade. São ex-ministros com tempo livre, jornalistas reformados que nunca escreveram nada de memorável, professores de ciência política em loop, e criaturas híbridas, com o pomposo rótulo de consultores de comunicação, cujo único talento conhecido é meter palavras como “pivot narrativo” e “ressonância emocional” em qualquer frase, mesmo que estejam a avaliar o tempo.
O comentário político, essa arte nobre de falar muito e dizer pouco, complementam os debates e desfilam em procissão, quais oráculos de ocasião.Todos eles empertigados nos seus fatos justos, olhos postos no efeito do retorno televisivo, debitando avaliações como se estivessem a julgar uma prova de dança contemporânea, com alegorias do tipo, "Foi sólido", diz um, "Faltou-lhe brilho", contrapõe outro, "Gesticulou demasiado", sentencia um terceiro, como se em vez de estarmos a eleger um primeiro-ministro fosse um novo pivot do Dança com as Estrelas?
Vistos de fora, porque cada vez mais estamos de fora desta miserável novela, estes especialistas parecem peixinhos ornamentais num aquário de estúdio. Agitam-se em círculos previsíveis, repetem lugares-comuns com a gravidade de sacerdotes, e olham uns para os outros à espera de aprovação mútua. É um circuito fechado, auto referencial, onanista até, onde a política real desaparece sob camadas de espuma opinativa. A política, tal como os ideais, já não serve para nada, porque o que interessa agora é a "narrativa", o "momento", o "framing", o "gesto", o "sorriso" no minuto e oportunidade certos.
Esses oráculos da insignificância atropelam-se uns aos outros em correntes de opinião circulares, como frangos dentro de um micro-ondas. Debatem com fervor se o candidato A fez bem em piscar o olho no fecho do segundo bloco, ou se o candidato B se engasgou ao dizer “economia circular”. É como ver e ouvir gente a discutir se o Titanic se afundou com elegância.
Pior não poderia ser, classificam os candidatos com escalas ridículas que fariam corar um júri de patinagem artística nos Jogos Olímpicos. Dou-lhe um 16 em 20 pelo desempenho, diz um, "Na minha escala emocional, foi um 8 positivo", diz outro, sem se rir, como se estivessem a avaliar cachorrinhos num concurso de beleza, ignorando por completo que estamos a falar do futuro do país, ou do que resta dele, depois de décadas de governação feita por brochuras de PowerPoint e promessas plastificadas.
Estes especialistas são os DJ’s da decadência democrática, remixam banalidades, repetem refrões e fazem-se passar por intelectuais. Vivem da efemeridade de cada debate como vermes alimentando-se de carne podre, regurgitando opiniões ocas para encher o espaço entre dois intervalos publicitários.
Falam entre si, para si, por si. Um círculo fechado de auto congratulação em que todos fingem importância e ninguém presta contas. O cidadão comum? Ignorado. O país real? Reduzido a notas de rodapé. O desespero social, o colapso habitacional, os salários de miséria? Não cabem no tempo de antena. São ruídos de fundo.
E nós? Nós estamos sentados à beira deste aquário televisivo, a ver os peixinhos dar voltas, volta após volta, na esperança de que, um dia, aprendam a nadar em direção a alguma coisa. Mas não. Continuam, infelizmente e teimosamente, a nadar para dentro de si próprios, felizes por serem vistos, mesmo que ninguém os ouça, e quando as eleições passarem, voltarão ao fundo da piscina de mijo, de onde vieram, à espera do próximo momento televisivo onde possam, mais uma vez, fingir que têm algo a dizer.
E o povo, o povo olha, se é que ainda olha para alguma coisa, e encolhe os ombros, entre mudar de canal ou assistir à décima avaliação da prestação do "candidato A" no segundo bloco do debate B, e em opção, perante tanta estupidez, escolhe o Netflix ou o TikTok. E não se lhes pode levar a mal, final de contas, a liturgia do comentário político, deixou de ser um serviço público, para se tornar numa missa para convertidos.
E assim vai a pré-campanha, um carnaval sem samba, uma tourada sem touro, um reality show sem prémio final. Mas não nos preocupemos, porque no final, alguém será eleito, e os peixinhos continuarão a nadar. Afinal, o aquário é deles, nós só pagamos a luz.