Cidade do Cinema no Barreiro
Blockbuster de Promessas, Realidade em Stop-Motion
Há projetos que nascem para mudar o mundo, outros, para mudar discursos, e há ainda aqueles que nascem apenas para encher panfletos de promessas, e capas de jornais regionais.
É este, o caso da gloriosa e eternamente iminente Cidade do Cinema no Barreiro, essa megaprodução do género ficção político-industrial, com argumento de Carlos Matos, produção de CDMInteractive e figurinos assinados por sucessivos autarcas de olhar visionário e bolso contido.
Anunciado com pompa, circunstância e uma pitada de megalomania, nos dourados anos 2000, o projeto prometia converter 20 hectares da Quimiparque, essa Disneylândia tóxica pós-industrial, num império audiovisual que deixaria Hollywood a chorar em Dolby Surround.
Estúdios de cinema, polos universitários, auditórios, laboratórios, milhares de empregos e, claro, a inevitável “atração internacional” que nunca falta nestes delírios de regeneração territorial.
Se alguém dissesse que estava prevista uma réplica digital do Óscar com sotaque alentejano, ninguém teria achado estranho.
Entre Sintra e o Barreiro, Deus escolheu o Barreiro, ou talvez não, se calhar, talvez tenha sido por avaliar os Barreirenses, como almas dóceis, de fé pronta e memória curta.
Aqui, uma promessa vale mais que uma obra, um sorriso e um aperto de mão, em campanha eleitoral, bastam para apagar anos de inércia, desleixo e oportunismo.
Os políticos repetem fórmulas gastas, slogans de papelão e inaugurações recicladas, e o povo, em vez de se indignar, aplaude com entusiasmo, como se fosse a primeira vez.
É essa paz resignada, que os torna presa fácil para quem faz da mentira um método, e da rotina do engano uma estratégia.
E assim se vive no Barreiro, entre o desalento e o conformismo, entre o que foi prometido e o que nunca chegará, com a cabeça baixa, mas no boletim de voto, está sempre pronto a repetir o erro.
Cascais recusou por questões ambientais, Sintra disse "não, obrigado", e o Barreiro, com o seu cocktail de amianto e esperança, foi considerado a “melhor alternativa”, porque quando todos os outros fogem, é aí que entra o Barreiro, com o seu charme oxidado e promessas que rendem mais votos que rendimentos.
Eram 300 milhões de euros que prometiam aterrar ali como se fossem extras num filme de super-heróis, mas, claro, como em qualquer produção portuguesa, não havia dinheiro para os efeitos especiais, nem para o guião, nem sequer para a claquete inicial.
O projeto foi debatido em assembleias, moções, congressos e cafés com bagaço, porque o PS queria acelerar o projeto, antes que ficasse, como um iogurte, fora do prazo.
O PCP dizia que o PS estava a usar o projeto como arma política, como se isso fosse uma novidade no cinema parlamentar, mas rumores de desvio para Loulé, surgiram como alternativa, ou talvez para manter a audiência acordada, e em 2008, alguém afirmava, com ar de produtor cansado, que o projeto estava pronto “para ser entregue à API”, mas ainda estavam à espera da ficha técnica.
Nada foi construído, nenhuma câmara foi vista, nenhum figurante foi contratado, e o único som ambiente que se ouviu na Quimiparque, foi o eco dos ratos a discutir qual deles interpretaria o protagonista da nova mini-série “O Desinvestimento”.
Os discursos, esses sim, mesmo sem infraestruturas, continuam a ser filmados em plano-sequência, sem cortes, com direito a banda sonora dramática e em tom menor.
Entretanto, os responsáveis locais, em vez de aceitarem que a “Cidade do Cinema” era apenas uma bobine vazia, viraram-se para outros projetos mais tangíveis.
Compraram o Teatro Cine do Barreiro, que vai ter de certeza, direito a cadeiras novas e um projetor que não derreta bobines.
Entretanto reanimaram o Cine Clube, porque afinal, o que é um município sem a sua dose anual de cinema francês, e pipocas compradas no Lidl?
O sonho, esse, continua a passar no Canal Memória, porque a Cidade do Cinema, essa epopeia inacabada, é hoje um símbolo, uma miragem no deserto, um monumento à arte de anunciar o que nunca se faz.
Infelizmente, este projeto, foi mais um triste episódio de uma série, sem fim, transformado num clássico do cinema político-português, à muito aceite pelos cidadãos, habituados ao género “planeamento estratégico com happy end cancelado”.
No fundo, o Barreiro teve a sua superprodução, só que, em vez de um filme, ganhou um trailer, e mesmo esse, com som intermitente, imagem tremida e legendas em atraso, permanecendo, como tantos outros, como um "sonho apenas anunciado"