Bombas & Diplomacia, um Musical em Dó Menor
Edição Internacional
Guerra em Prime Time, ou a Tragédia Convertida em Espectáculo, Comentada por Generais de Sofá e Patrocinada pela Indústria da Morte.
No grande teatro do Médio Oriente, a peça repete-se com a previsibilidade de uma telenovela venezuelana, foguetes à esquerda, drones à direita, e ao centro a ONU a pedir calma como quem tenta separar dois bêbados numa tasca em dia de derby.
Israel bombardeou Gaza, o Hezbollah respondeu com uma salva de mísseis, o Irão apontou o dedo de longe como quem diz “não me obrigues a ir aí”, e os Estados Unidos, esse grande terapeuta geoestratégico, distribui($) armas a um lado e conselhos de contenção ao outro, como um verdadeiro pacificador com uma Glock na mão e um PowerPoint no bolso.
E a plateia, que é o resto do mundo, aplaude com hipocrisia, como quem vê uma tourada e diz que está lá só pela cultura. A Europa, por sua vez, veste o luto institucional em tons pastel, enquanto assina contratos de gás com quem tiver menos sangue visível nas mãos naquele dia.
Emmanuel Macron aparece a falar de cessar-fogo, com ar de quem acabou de sair de um retiro budista, ao mesmo tempo que assina exportações de armamento "não letal", sabe-se lá o que isso é, talvez granadas com palavras de encorajamento.
Já o Reino Unido, sempre elegante na sua decadência pós-imperial, limita-se a repetir “Israel tem direito a defender-se” como um papagaio diplomático em piloto automático, ignorando que essa defesa já inclui pulverizar bairros inteiros com a delicadeza de um elefante com jet lag.
A imprensa internacional, essa sim é imparcialmente sensacionalista, abre com imagens de crianças feridas, encerra com gráficos animados e, entre bombardeamentos, há sempre tempo para uma reportagem sobre “como o conflito afeta o turismo em Telavive”.
A morte, desde que bem enquadrada, continua a dar audiências, e se alguém ousa fazer perguntas, é logo acusado de não perceber a complexidade da situação, porque neste jogo, a empatia é facultativa, mas a narrativa é obrigatória.
No fim, restam os escombros e as conferências, um general israelita aponta para um mapa como se estivesse a jogar "batalha naval" e diz que tudo foi “cirúrgico”.
Do lado de lá, líderes de organizações armadas prometem vingança com um sorriso de mártir em treino. E nós? Nós atualizamos o feed, partilhamos indignação com um filtro vintage e voltamos à nossa vida, confortados pela certeza de que, pelo menos, não é aqui.
No Ocidente, a reacção é de uma elegância patética, políticos choram nos parlamentos, empoleirados no drama como pombos em estátuas, lançando comunicados que equivalem a acenar com um lenço branco a um furacão.
“Lamentamos profundamente a escalada da violência”, dizem eles, enquanto aprovam orçamentos de defesa dignos de filmes da Marvel. O secretário de Estado norte-americano chega ao aeroporto de Telavive com um sorriso encenado, faz umas selfies com capacete e depois voa para Riade para vender paz com cláusula de exclusão aérea e um míssil grátis.
Entretanto, a Europa, sempre pronta a demonstrar a sua relevância simbólica, sugere uma conferência de paz, em Bruxelas, porque não há nada mais eficaz para apaziguar um conflito tribal, religioso e geopolítico do que sentar Ayatollahs e Generais israelitas num salão com carpete cinzenta e bolachas digestivas.
A Suécia manda condolências, a Alemanha envia tanques e Portugal, bem, Portugal envia o Ministro dos Negócios Estrangeiros, o que é praticamente o mesmo que não mandar nada.
Mas há que entender, esta é uma guerra muito complexa, como dizem os comentadores pagos à linha, que vão explicando ao público que “não é bem assim”, que “é preciso compreender o contexto histórico”, como se a decapitação de crianças e o bombardeamento de hospitais fossem meros acidentes de percurso.
E entre os cadáveres e as manchetes, os moralistas de sofá dividem-se, uns pintam bandeiras nos avatares das redes sociais, outros escrevem tratados sobre resistência e colonialismo enquanto tomam café nas esplanadas do Bairro Alto.
No fim, ou melhor, no próximo intervalo deste ciclo dramático, quando os números dos mortos forem suficientemente altos para justificar uma trégua televisiva, aparecerá um enviado especial da CNN, NOW ou outro, a entrevistar uma criança amputada, com aquela voz de gravidade importada: “Maria, como é viver numa zona de conflito?”.
Maria responde com os olhos, mas o microfone não capta. A câmara foca o sangue nas mãos, o público suspira, e os drones voltam a sobrevoar em nome da paz.
E assim vai o Médio Oriente, numa coreografia macabra onde todos fingem dançar por princípios, num triste e macabro espetáculo, com cadáveres no chão e moralistas nos palcos, enquanto os verdadeiros autores da peça contam os lucros nos bastidores, mas onde ninguém larga a faca.
Os generais, esses gloriosos estrategas da reserva, reciclados agora como opinion makers de horário nobre, verdadeiros influencers de farda passada a ferro, que trocam o campo de batalha pelo estúdio climatizado das televisões portuguesas, onde a pólvora é substituída por soundbites e o campo de visão vai até ao teleponto.
A guerra, em tempos teatro de tragédia, é hoje programa de painel ou telenovela, onde cada general reformado aparece com um PowerPoint mental e um sorriso condescendente, explicando ao povo, entre dois goles de água e uma metáfora bélica, como se destrói um bairro com responsabilidade e se invade um território com “inteligência táctica”.
São os poetas da mortandade cirúrgica, os novos bardos da geoestratégia, e quanto mais devastadora for a imagem do dia, mais sereno e monocórdico o tom com que descrevem, “Aqui vemos um ataque de saturação com munição termobárica. Nada de especial, terça-feira normal.”
Estes generais-apresentadores são a versão moderna do oráculo, só que em vez de sacerdócio, têm contrato com a Media Capital. Não têm tropas, mas têm gráficos, não comandam exércitos, mas comandam audiências, e se há novo confronto, lá estão eles, a postos, com a pontualidade de um padre da aldeia para a missa de domingo.
Uns dizem que se devia ter invadido mais cedo, outros que se devia ter bombardeado mais tarde, mas todos concordam numa coisa, nada se resolve sem um mapa na mão e uma frase em latim militar que ninguém pediu.
Transformaram a guerra numa rubrica. “Hoje no Conflito ao Minuto, o general fala-nos do uso de drones suicidas e partilha uma receita de bacalhau à la comando, e o público aplaude, fascinado com a calma com que se descreve o fim do mundo.
As explosões no ecrã, os sons abafados dos gritos, as colunas de fumo, tudo serve de fundo para análises com a empatia de um bot de Excel, e nisto, os media, sempre ávidos de dramatismo higienizado, adoram.
É o infotainment perfeito, destruição com dicção, mortes explicadas com régua e esquadro, ou seja, uma espécie de Masterchef da geopolítica, mas em vez de temperos, discutem calibres de artilharia.
E assim se perpetua esta tragicomédia moderna, onde o horror da guerra é apenas mais um segmento televisivo, apresentado por senhores de cabelo branco e gravata patriótica, que tratam o apocalipse como quem comenta o resultado de um dérbi.
A guerra deixou de ser um drama humano, passou a ser um entretenimento com crachás e patrocínios, e os generais de sofá, esses, são as estrelas da nova temporada.
Depois deste já longo desabafo, a única coisa que posso fazer, e desejar-vos uma boa noite, e até ao próximo massacre patrocinado pela Lockheed Martin, com o apoio institucional da NATO e transmissão exclusiva na sua televisão por cabo preferida, porque matar já não é um segredo, é "Prime Time".