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A Transfiguração Mágica da Quinta Braamcamp, chamemos-lhe teatro, ou, para ser mais honesto, opereta municipal, encenada com talento medíocre, orçamento público e aplausos entre camaradas.
O palco, a Quinta Braamcamp, com cerca de 21 hectares de história, ruínas, aves e potencial urbanístico com vista para o Tejo.
Como cabeça de cartaz, o Vice-presidente Rui Braga, com o pelouro do Urbanismo no Barreiro, um homem com uma carreira construída entre arranjos de bastidores e colaborações intermunicipais que fazem corar de inveja qualquer assessor parlamentar.
Como restante elenco, os figurantes, Frederico Rosa, António Gameiro, Emanuel Santos, Carlos Casimiro Matos, tudo nomes distintos, mas com um só denominador comum, a confortável certeza de que, em Portugal, tudo se pode fazer desde que não se diga em voz alta. E se disserem, sempre se pode mandar calar com um parecer jurídico.
Em 2016, a CDU adquire a Braamcamp como quem ergue uma catedral ecológica. É o regresso à natureza, ao Barreiro operário, ao moinho de maré e ao chilrear das aves, ou, no mínimo, uma jogada para travar o betão durante uns anos. Mas, em 2020, o PS entra em cena, e a catedral torna-se galeria comercial imaginária, e ali está Rui Braga, em êxtase tecnocrática, pronto a “requalificar” a Quinta, que é como os autarcas modernos dizem “vender tudo o que mexe”, numa retórica economicista, com o slogan "vendam-se as ruínas, os ninhos e até os cágados se der jeito".
A venda faz-se, não sem charme, com concurso público com um caderno de encargos meticulosamente “adaptado” e uma vitória da empresa Saint Germain, cujo proprietário tem um currículo na construção civil e outro, menos visível, na arte de aparecer no sítio certo à hora do cheque.
É aqui que tudo se torna maravilhosamente kafkiano, Emanuel Santos, o diligente director de Urbanismo do Barreiro, nomeado sob a batuta do camarada Rui Braga, preside ao concurso de venda da quinta, num prodígioso acto de transformação de património ecológico em activo especulativo.
Emanuel Santos, empolgado pelo protagonismo a si concedido, não se contém nas suas funções e vai às redes sociais, este moderno templo da política, e aplaude publicamente António Gameiro pela sua candidatura em Ourém.
Não é tráfico de influências, é só boa educação e espírito de camaradagem, para agradar ao chefe e sua bateria de "compagnons de route".
Rui Braga, o mesmo,que já nos habituou à sua surpreendente capacidade de alinhar negócios entre câmaras municipais, como quem troca cromos entre meninos bem comportados, não teve tempo para conter o excesso de voluntarismo do seu novo pupilo, e este, deslumbrado pelo protagonismo e influência, que lhe atribuíram, deixou escorregar o jogo do chefe e sofreu as consequências.
Foi à vida!
Se há coisa que Rui Braga sabe fazer é transitar entre o discurso técnico e a prática política, entre o Barreiro e as suas discretas pontes com outras autarquias, veja-se a relação peculiar com Ourém e os seus escritórios de advogados de estimação, mas esqueceu-se da ambição desmedida do seu jovem arquitecto, que lhe estragou o cenário.
O nome António Gameiro? Claro que sim, sempre por perto, deputado do PS, consultor multifunções e, nos tempos livres, frequentador do mesmo ecossistema de favores.
O que vemos, portanto, é um retrato de família. Uma pequena comunidade de afinidades electivas, onde as decisões se tomam entre gente de bem, com os olhos postos no futuro, e os pés bem assentes na rede de contactos. Nada de ilegal, claro, apenas um certo perfume a conluio, um travo a favoritismo, um suspiro de promiscuidade entre o público e o privado.
Foi então que, como nos grandes romances de suspense jurídico, entrou em cena a providência cautelar. A Associação “Barreiro, Património, Memória e Futuro” interrompe este esplendoroso espectáculo, com uma chatice legal. Tudo parado, tudo em tribunal. A câmara, naturalmente, responde com elegância e contrata um escritório de advogados, mas atenção, não é um qualquer escritório de advogados, pois vai logo escolher precisamente o mesmo que já trabalhava para a Câmara de Ourém, onde António Gameiro, deputado do PS e personagem secundária em ascensão, ensaiava os seus voos autárquicos.
A escolha do escritório “Lorena de Séves & Associados” para defender a Câmara do Barreiro na guerra jurídica sobre a Braamcamp, pode parecer, mas não é casual. É uma daquelas coincidências, que só ocorrem em Portugal, onde as relações interpessoais valem mais que as cláusulas contratuais. O mesmo escritório, as mesmas caras, o mesmo circuito fechado, e Rui Braga, sempre com ar de quem apenas cumpre o que está tecnicamente previsto, ainda que seja tudo cuidadosamente preparado, fora do papel.
A REN, para quem desconhece a sigla, Reserva Ecológica Nacional, uma vez questionada para parecer sobre o domínio hídrico, o leito de cheia? Irrelevante. Para Rui Braga, um obstáculo ambiental é apenas um problema de comunicação. O importante é manter o discurso moderno, “revitalização urbana”, “sustentabilidade económica”, “valorização do território”.
É preciso ser muito distraído, ou muito cúmplice, para não perceber que o Barreiro, sob esta gestão, se tornou numa incubadora de negócios obscuros embrulhados em PowerPoints.
Afinal, a transparência é como a REN, existe no papel, mas nunca atrapalha quem sabe bem onde está a porta de saída… e de entrada.
Não nos enganemos, a venda da Quinta Braamcamp é um monumento à promiscuidade entre política, urbanismo e oportunidade privada. Rui Braga não foi um espectador, foi maestro, não se limitou a assistir, empurrou, promoveu, e aprovou.
No meio do fumo, dos pareceres e das redes sociais, até teve tempo para assistir aos elogios públicos entre o seu subordinado e um deputado. É que no Barreiro, como em Ourém ou em qualquer outro feudo socialista travestido de gestão moderna, a proximidade é uma virtude, desde que ninguém pergunte porquê.
No final, nada disto será ilegal, apenas imoral, cínico e profundamente revelador da promiscuidade da politica com a gestão do território.
A Quinta Braamcamp não foi vendida, foi sacrificada, e o sacrifício, como sempre, fez-se em nome do progresso, com contratos discutidos em gabinetes longe da vista, mas perto dos amigos.
Rui Braga, mais uma vez, cumpriu o seu papel, transformou o Barreiro num lugar onde tudo é possível, desde que se saiba com quem almoçar. A cidade, essa, que espere sentada pelo futuro sustentável, prometido nos bem ilustrados programas eleitorais, porque por agora, só há espaço para negócios sustentados em cumplicidades.
Este caso da Quinta Braamcamp é um manual de instruções para quem quiser transformar interesse público em oportunidade privada sem sujar as mãos. Compra-se com a bandeira verde da ecologia, vende-se com o glamour cinzento do betão. Os pássaros? Que voem. As ruínas? Que se abatam. A opinião pública? Que se distraia com outra polémica, de preferência com mais gritaria nas redes sociais.