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Barrabás - o Barba Azul

Barrabás - o Barba Azul

Mais um Milagre Barreirense

Bairro Alves Redol, o Modelo do Reboco e do Remendo

Barba Azul, 24.04.25

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Senhoras e senhores, preparem o coração para uma história comovente sobre amor, anunciada a 01 de Maio de 2023, com retroatividade a 2017.

Amor à cidade? Não. Amor às pessoas? Menos. Digamos, antes: amor ao orçamento da UE? Exacto.

Foi no longínquo 10 de outubro de 2024, uma data que ficará para sempre gravada nas lápides da propaganda autárquica, que arrancou a gloriosa reabilitação dos 92 fogos do Bairro Alves Redol.

Um investimento de 4,4 milhões de euros, tão sonante quanto a promessa de que “ninguém seria deixado para trás”.

A frase, aliás, foi dita com o mesmo tom messiânico com que se inaugurou a Fonte Luminosa da Avenida da Praia em 2019, antes que a água voltasse a desaparecer… como os técnicos responsáveis.

Frederico Rosa, presidente e apóstolo da regeneração urbana, falou com ar compungido de um bairro “envelhecido e obsoleto”. Estranho, vindo de alguém que ignorou o mesmo bairro durante sete anos consecutivos enquanto financiava, sem parcimónia, a reinvenção da zona ribeirinha da Avenida Bento Gonçalves, onde entre food trucks e concertos com cachets generosos, se aplicou mais entusiasmo do que cimento.

E como esquecer o Festival Out.Fest, com milhares investidos em artistas sonoros experimentais que tocavam para gatos e sombras no AMAC, enquanto os moradores do Alves Redol assistiam à derrocada dos estores e das infiltrações. A cultura foi prioritária, sim, mas apenas nas zonas onde havia lugar para palcos e reportagem na RTP2.

Agora, de repente, os mesmos que sempre evitaram passar na Rua Alfredo Cunha de noite, e de dia também, sejamos honestos, descobriram o valor estratégico do Bairro Alves Redol.

O PRR dá dinheiro, e dá jeito, ainda mais quando se pode dizer que se compraram “mais de três dezenas de casas”.

Onde, em que condições, a quem? Silêncio. Mas talvez tenha sido no mesmo espírito transparente com que se adjudicou, sem concurso público, a montagem dos toldos natalícios da Baixa em 2022 àquela empresa que, curiosamente, também decorou o casamento de um conhecido assessor.

Mas comecemos pelo princípio desta história.
O Bairro Alves Redol ia ser regenerado! Isso mesmo, em 2017 a CDU lá conseguiu uns trocos do PEDU, um daqueles programas europeus com nomes que parecem passwords de Wi-Fi, para dar uma nova vida ao bairro.

Casas mais dignas, espaços públicos decentes, uma urbanização com orgulho, enfim, um cenário que faria o Álvaro Siza chorar de emoção.

Mas depois, após os preliminares, houve eleições, e veio o PS, e trouxe uma coisa mais bonita que urbanismo, chamado visão estratégica!

Vamos regenerar? Claro que sim. Mas, e se antes, desviássemos este dinheirinho para requalificar espaços que nem sequer são nossos? É que investir em propriedade alheia é outra loiça!, terá dito alguém entre dois cafés e um power point, e lá se foi a regeneração do bairro.

Mas atenção, nada foi abandonado. Foi apenas “reformulado”. Sabem quando nos dizem que o autocarro não foi cancelado, só não vem hoje? Pronto, é isso.

A CDU esperneou, acusou, gritou "realojamento" e "abandono", e o PS, com a calma de um padre a benzer cimento fresco, respondeu, estamos a evitar deslocar 37 famílias, claro porque nada diz “apoio social” como deixar as famílias no mesmo prédio a cair aos bocados, mas com dignidade!

E os 4,4 milhões de euros da nova empreitada? Foram lançados num concurso público, sim senhor. Tudo certinho, no Diário da República, onde as grandes jogadas urbanísticas são para adornar o sono dos justos. Mas claro, “transparente” como um vidro fosco com três dedadas e um autocolante a dizer “adjudicado a quem for mais amigo”.

Sim, é claro que não houve interesses obscuros! Ninguém sonharia em mexer num concurso de reabilitação urbana num bairro social! Que horror! Isso só acontece em países corrompidos, longe deste oásis ético chamado Barreiro.

Mas a culpa não é só do PS, nem da CDU, nem da Câmara, a culpa é nossa, porque deixamos que nos troquem regeneração por propaganda, betão por promessas, e bairros por power points com renderizações 3D.

E eis que, senão, assistimos a um milagre no Barreiro! O Bairro Alves Redol, que durante anos, décadas, foi tratado como aquele parente incómodo que só se convida para o Natal porque é obrigatório, está finalmente a levar com obras! Sim, obras de verdade! Com capacetes, cimento, fita vermelha e tudo.

Um dos blocos até já está pronto! Concluído! Feito! Um autêntico monumento à resiliência, não dos moradores, claro, mas da capacidade do PS em apresentar uma fachada nova a tempo das eleições. Porque, como todos sabemos, regenerar é bom, mas regenerar no momento certo, visivelmente é ainda melhor.

Mas agora há blocos a brilhar.
Literalmente.
Com tinta fresca.
E selfies com os vereadores.

Portanto, celebremos!

Temos um bairro que era para ser todo recuperado, depois não era, depois era outra vez, e agora está a ser aos bocadinhos. Um bocadinho por legislatura, um bloco por mandato, um andar por promessa.

Agora, sim, diz o PS, porque antes era abandono, agora, transformou -se num palco de reabilitação urbana com cobertura mediática garantida. Aliás, dizem que o segundo bloco já está a caminho, o que, à velocidade da administração local, significa que estará pronto mais ou menos quando Portugal ganhar o Mundial de Futebol.

Mas cuidado com o cinismo, porque há que aplaudir, temos um bloco recuperado em 2025, o que é uma vitória colossal, para um projecto iniciado em 2017! É como entregar um trabalho da faculdade com oito anos de atraso e receber um elogio do reitor por “persistência”.

E quem sabe, se tudo correr bem, em 2040, os netos dos actuais moradores talvez já vivam em casas dignas. Com sorte até já terão uma paragem de autocarro com sombra. E uma placa a dizer:
“Obra iniciada em 2017, retomada em 2023, concluída… um dia.”

E assim se fez o milagre. Primeiro esqueceu-se o bairro. Depois iniciou-se a reabilitação com muito ruído, e por fim... vende-se o silêncio.

Pinotes e o Papa

A homilia laica do deputado missionário

Barba Azul, 23.04.25

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Na sessão da Assembleia Municipal do Barreiro, hoje, dia 23 de abril, assistimos a um milagre. Não foi a multiplicação dos pães, mas a multiplicação dos lugares comuns. André Pinotes Batista, numa performance que oscilou entre a prédica e o panfleto, resolveu homenagear o Papa Francisco com a unção de quem descobriu a espiritualidade nos últimos resultados da Eurosondagem.

Emocionado, citou o Pontífice como se citasse o Che Guevara de batina, esquecendo-se, por momentos, que a Assembleia Municipal do Barreiro não é nem o Vaticano II nem a Comissão de Direitos Humanos da ONU. Faltou-lhe apenas puxar de um terço, e ajoelhar-se diante do retrato oficial do presidente da mesa, a sua própria pessoa.

Falou do Papa como “homem de pontes”, como “voz dos esquecidos”, como se ele próprio não fizesse parte da maquinaria partidária que há décadas ergue muros de betão, paternalismo e clientelismo no Barreiro, não precisamente os muros do Vaticano, mas os da indiferença política a que o PS local já nos habituou.

É tocante, mas ao mesmo tempo chocante, ver e ouvir Pinotes invocar a figura de Francisco, o homem que denunciou o consumismo, enquanto o PS gere orçamentos camarários com a delicadeza de quem distribui brindes num comício. O mesmo Papa que apelava à humildade, citado por um político que há muito esqueceu o que é escutar sem preparar logo a resposta em tom messiânico.

O mais enternecedor, no entanto, foi a subtileza com que transformou o Papa numa espécie de mascote espiritual do seu próprio discurso político. Como se a santidade do Pontífice servisse de verniz para esconder a pobreza de ideias, ou pior, o conforto moral em que se instalou uma geração de políticos que, entre um voto de pesar e uma moção insossa, vão garantindo lugar na procissão dos cargos públicos.

Que ninguém se engane, porque Pinotes Batista não citou Francisco, usou-o, como se usa uma citação de Mandela, uma frase de Saramago ou um verso de Sophia, para dar profundidade a um poço sem água. No fundo, não homenageou o Papa, canonizou-se a si próprio.

O Circo das Análises

A Piscina de Mijo onde Ninguém Se Afoga

Barba Azul, 23.04.25

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Vivemos tempos gloriosos, a democracia, esse velho teatro de sombras, atingiu a sua fase mais sofisticada, a análise política transformada num campeonato escolar de ginástica artística. A pré-campanha eleitoral, outrora ocasião para se discutir o rumo de um país, é hoje um desfile cacofónico de vaidades empoleiradas em púlpitos de acrílico, iluminadas por holofotes e alimentadas a likes.

A pré-campanha eleitoral portuguesa entrou oficialmente na sua fase terminal, que dá pelo nome de indigência analítica. O debate político, enquanto exercício de confronto ideológico ou apresentação de propostas, já não existe, foi substituído por uma espécie de Festival Eurovisão da Carinha Laroca e da Frase Feita, onde o que conta não é o que se diz, é o tom, o timbre, o sorriso estudado e o número de vezes que se interrompeu o adversário.

A culpa, ora se atribui às televisões, ou, melhor dizendo, dos debates televisivos, esses combates de boxe com luvas de veludo, onde cada candidato tenta não parecer demasiado burro enquanto sorri para a câmara com a mesma convicção de um apresentador de televendas. Mas a verdadeira culpa, sejamos justos, não é dos debates em si, mas da fauna que se lhes segue, que dá pelo nome de comentário político.

E ainda os microfones dos debates não arrefeceram, abrem-se os portões do carnaval informativo. As santas romarias de comentadores  multiplicam-se como cogumelos num bosque húmido de mediocridade. São ex-ministros com tempo livre, jornalistas reformados que nunca escreveram nada de memorável, professores de ciência política em loop, e criaturas híbridas, com o pomposo rótulo de consultores de comunicação, cujo único talento conhecido é meter palavras como “pivot narrativo” e “ressonância emocional” em qualquer frase, mesmo que estejam a avaliar o tempo.

O comentário político, essa arte nobre de falar muito e dizer pouco, complementam os debates e desfilam em procissão, quais oráculos de ocasião.Todos eles empertigados nos seus fatos justos, olhos postos no efeito do retorno televisivo, debitando avaliações como se estivessem a julgar uma prova de dança contemporânea, com alegorias do tipo, "Foi sólido", diz um, "Faltou-lhe brilho", contrapõe outro, "Gesticulou demasiado", sentencia um terceiro, como se em vez de estarmos a eleger um primeiro-ministro fosse um novo pivot do Dança com as Estrelas?

Vistos de fora, porque cada vez mais estamos de fora desta miserável novela, estes especialistas parecem peixinhos ornamentais num aquário de estúdio. Agitam-se em círculos previsíveis, repetem lugares-comuns com a gravidade de sacerdotes, e olham uns para os outros à espera de aprovação mútua. É um circuito fechado, auto referencial, onanista até, onde a política real desaparece sob camadas de espuma opinativa. A política, tal como os ideais, já não serve para nada, porque o que interessa agora é a "narrativa", o "momento", o "framing", o "gesto", o "sorriso" no minuto e oportunidade certos.

Esses oráculos da insignificância atropelam-se uns aos outros em correntes de opinião circulares, como frangos dentro de um micro-ondas. Debatem com fervor se o candidato A fez bem em piscar o olho no fecho do segundo bloco, ou se o candidato B se engasgou ao dizer “economia circular”. É como ver e ouvir gente a discutir se o Titanic se afundou com elegância.

Pior não poderia ser, classificam os candidatos com escalas ridículas que fariam corar um júri de patinagem artística nos Jogos Olímpicos. Dou-lhe um 16 em 20 pelo desempenho, diz um, "Na minha escala emocional, foi um 8 positivo", diz outro, sem se rir, como se estivessem a avaliar cachorrinhos num concurso de beleza, ignorando por completo que estamos a falar do futuro do país, ou do que resta dele, depois de décadas de governação feita por brochuras de PowerPoint e promessas plastificadas.

Estes especialistas são os DJ’s da decadência democrática, remixam banalidades, repetem refrões e fazem-se passar por intelectuais. Vivem da efemeridade de cada debate como vermes alimentando-se de carne podre, regurgitando opiniões ocas para encher o espaço entre dois intervalos publicitários.

Falam entre si, para si, por si. Um círculo fechado de auto congratulação em que todos fingem importância e ninguém presta contas. O cidadão comum? Ignorado. O país real? Reduzido a notas de rodapé. O desespero social, o colapso habitacional, os salários de miséria? Não cabem no tempo de antena. São ruídos de fundo.

E nós? Nós estamos sentados à beira deste aquário televisivo, a ver os peixinhos dar voltas, volta após volta, na esperança de que, um dia, aprendam a nadar em direção a alguma coisa. Mas não. Continuam, infelizmente e teimosamente, a nadar para dentro de si próprios, felizes por serem vistos, mesmo que ninguém os ouça, e quando as eleições passarem, voltarão ao fundo da piscina de mijo, de onde vieram, à espera do próximo momento televisivo onde possam, mais uma vez, fingir que têm algo a dizer.

E o povo, o povo olha, se é que ainda olha para alguma coisa, e encolhe os ombros, entre mudar de canal ou assistir à décima avaliação da prestação do "candidato A" no segundo bloco do debate B, e em opção, perante tanta estupidez, escolhe o Netflix ou o TikTok. E não se lhes pode levar a mal, final de contas, a liturgia do comentário político, deixou de ser um serviço público, para se tornar numa missa para convertidos.

E assim vai a pré-campanha, um carnaval sem samba, uma tourada sem touro, um reality show sem prémio final. Mas não nos preocupemos, porque no final, alguém será eleito, e os peixinhos continuarão a nadar. Afinal, o aquário é deles, nós só pagamos a luz.

Mobilidade Verde e Outras Fantasias

Crónicas Barreirenses

Barba Azul, 23.04.25

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O Barreiro prepara-se para comprar 40 autocarros eléctricos. Quarenta! Uma revolução sobre rodas, mas também um daqueles investimentos em que o entusiasmo político e a realidade técnica seguem em vias paralelas, e nunca se encontram.

Diz-se por aí, com ar grave e sobrancelha franzida, que os autocarros eléctricos são o futuro. Silenciosos, limpinhos, amigos do ambiente e com aquele ar futurista de ficção científica barata. Substituem os vetustos autocarros a gasóleo e outros a gás, esses velhos malcheirosos que ousavam ter autonomia e funcionavam mesmo quando chovia.

Mas vejamos a magia desta transição. Primeiro, despejam-se milhões em autocarros, que precisam de carregar durante horas para fazer menos quilómetros que um Fiat Panda de 1995. Depois, instalam-se postos de carregamento, e quando os postos falham, porque claro que falham, voltamos aos bons velhos tempos, autocarros parados, utentes atrasados e motoristas a jogar sudoku no terminal.

A comparação com os autocarros a gasóleo e a gás é deliciosa. Sim, eram barulhentos, fediam a brunch de petróleo com cebola, mas andavam. Não havia drama com a autonomia, não era preciso rezar para que o carregador não estivesse com problemas, e o gás não vinha embalado em promessas de neutralidade carbónica "made in China".

Ah, e o negócio! O negócio dos eléctricos é mesmo o melhor, adjudicações directas a fornecedores visionários, relatórios cheios de palavras como sustentabilidade, inovação, resiliência e outras patranhas com prazo de validade até às próximas eleições. O eléctrico não é só um veículo, é um altar ambulante ao deus do greenwashing.

E se por acaso alguém pergunta pelos custos de manutenção, pelas baterias tóxicas, pela origem do lítio ou pelo impacto ambiental da produção? Silêncio. Sorrisos. PowerPoint. E mais uma nota de rodapé a pedir fundos europeus para salvar o planeta com um autocarro que não arranca em subidas

O futuro da mobilidade verde chegou ao Barreiro, sim, senhor presidente, mas sobre o pesadelo do endividamento, não sei para quantas gerações, decidido nos bastidores milionários dos postos de carregamento, da manutenção e dos handicaps operacionais que os autarcas fazem de conta que não existem.

Passamos dos fumos do diesel para os silêncios da electricidade. Foi um salto civilizacional, dizem eles. Um salto, com um custo tão silencioso quanto os próprios autocarros.

Porque ninguém fala do pequeno pormenor do posto de carregamento. Não, não é só espetar uma ficha numa tomada de parede da garagem do sr. Américo. É preciso construir toda uma infraestrutura, subestação eléctrica dedicada, cablagens subterrâneas dignas do Star Trek, sistemas de gestão inteligente da carga, que raramente são inteligentes, e um software de monitorização que custa mais do que o autocarro.

E claro, tudo isso não é vendido por empresas locais, mas por consórcios internacionais com logótipos verdes e preços em euros suíços. Uma simples tomada de 1000V com cabo refrigerado custa mais do que um T2 no Barreiro Velho. Mas é “verde”, portanto calem-se e paguem.

Agora vamos à manutenção. As baterias, que são o coração, e o rim do autocarro eléctrico, precisam de ser substituídas a cada X mil quilómetros, dependendo do uso, do clima e do alinhamento dos planetas. Cada substituição pode custar tanto quanto um autocarro novo a gás. E como se isso não bastasse, os técnicos que sabem mexer nesses sistemas são mais raros do que funcionários públicos em horário completo e terão de ser obtidos por contratação externa.

Falemos também dos handicaps do funcionamento, expressão suave para desastres operacionais diários. O autocarro precisa de horas para carregar e tem menos autonomia do que o carro do Presidente da Junta. Em dias de muito frio ou muito calor, a autonomia vai-se com o ar condicionado. Como resultado, lá voltaremos a carreiras que ficam sem serviço ou são substituídas por autocarros a diesel e a gás. A isto chama-se a cereja orgânica em cima do bolo ecológico.

E quando há falha de energia, blackout ou avaria no posto de carregamento? Nada se move, a frota pode ficar a fazer jejum eléctrico enquanto a população espera nas paragens ao frio. A solução? Taxis. Carros. Carrinhas. Tudo menos o tão amado transporte público descarbonizado.

Mas vamos com calma, o Barreiro ainda não comprou os autocarros eléctricos, é verdade, ainda está no forno, a cozer em lume brando.

Vêm aí milhões em investimentos “estratégicos”, “estruturantes” e “ambientalmente transformadores”. Traduzindo, por miúdos, vão comprar autocarros eléctricos e a cidade vai entrar oficialmente no clube dos municípios que confundem marketing com mobilidade.

Segundo os bastidores técnicos, a ideia é adquirir cerca de 30 a 40 unidades eléctricas, com carregamento noturno e eventual sistema de carga rápida para reforço nas pontas do dia. Parece bonito, aliciante, prometedor, mas vamos aos números.

Cada autocarro eléctrico pode custar entre 450 mil a 600 mil euros. Vamos fazer a média, pelos 500 mil. Para 40 unidades, estamos a falar de 20 milhões de euros, só em veículos.

Mas o melhor vem depois, porque as indispensáveis unidades de alimentação eléctrica, ou seja, os postos de carregamento, não são tomadas do IKEA.

Uma frota deste tamanho exige um sistema de carregamento robusto, seguro e não improvisado com extensões chinesas.

Uma Subestação elétrica dedicada, para alimentar em simultâneo dezenas de autocarros em carregamento noturno e possibilitar carga rápida em rotas críticas.
Custo estimado, de 1,5 a 2 milhões de euros.

Obras de adaptação da central de recolha, garagem municipal dos TCB. Escavações, reforço de solo, canalizações elétricas de alta tensão, segurança contra incêndios, já que as baterias de lítio adoram explodir.
Custo estimado, 2 milhões de euros.

Postos de carregamento, pelo menos 30 unidades de carga normal (AC), cerca de 30 mil euros cada = 900 mil de euros.

Adicionalmente, 10 a 15 carregadores rápidos (DC), para uso de emergência ou rotatividade mais intensiva, 60 mil euros cada = 900 mil euros.

Sistema de gestão de frota e carregamento, Software de monitorização, optimização de carga, controle térmico, integração com horários e gestão de consumo em tempo real.
Custo estimado, 400 mil a 600 mil euros.

Total estimado da infraestrutura
Subestação: 1,75 M€
Obras e adaptações: 2 M€
Carregadores (AC + DC): 1,8 M€
Gestão e monitorização: 0,5 M€

Total estimado, só para infraestruturas, entre 6 e 7 milhões de euros.

Manutenção e operação, não incluída nem orçamentada, mas real e volumosa.

Substituição de baterias em 6 a 8 anos, 30 a 40 mil euros por unidade, potencial de 2 a 2,4 milhões de euros adicionais.

Técnicos especializados, formação de motoristas, adaptações de linhas com autonomia limitada. Isto, para não falar da dispensa de pessoal excedentário que não se adapta à nova tecnologia. Mais custos com indemnizações e Segurança Social.

Impacto diário se um carregador falhar, carreira suprimida, população irritada, autocarro parado como escultura moderna.

Em conclusão, serão necessários cerca de 30 milhões de euros, no mínimo, para pôr os 40 autocarros eléctricos a andar no sistema de mobilidade do concelho. E ainda estamos a fazer fé que a E-Redes consiga reforçar a rede local sem pedir para desligar o Cristo-Rei.

Segundo informações fornecidas em Assembleia Municipal, a Vereadora com competência delegada, Maria João Regalo, afirmou e apresentou uma proposta para aprovação, de um empréstimo com 3 anos de carência, no valor de 17.000.000€.

Face aos custos aqui demonstrados, nas suas diversas parcelas complementares, mesmo com o valor atribuído pelo PRR, nem para a compra dos autocarros chega.

E o resto, de onde vem o dinheiro?

Estando ainda a ser pago o valor da compra dos autocarros a gás, adquiridos ainda pelo executivo da CDU, é com preocupação que constatamos a hipoteca de investimento para a próxima ou próximas décadas, mesmo desconhecendo-se a real capacidade financeira da autarquia.

E tudo isto, claro, apresentado como investimento “visionário”. O povo que fique à espera do autocarro debaixo de chuva, porque enquanto se instala a subestação no Lavradio, os elétricos devem vir, mas à boleia de um qualquer camião de reboque.

Claro que tudo isto será justificado com candidaturas a fundos europeus, mobilidade verde e redução de emissões. Mas quando começarem os atrasos, as falhas de carregamento, e os custos de substituição das baterias, que começam a cair para metade da capacidade em apenas 5 a 6 anos, alguém vai lembrar-se com saudade dos velhos autocarros a gasóleo e a gás.

E para quem acha que isto é só um exagero, que ligue para Setúbal, Almada ou Loures e pergunte como correu a transição eléctrica. Há operadores a operar com autocarros a gasóleo, porque os elétricos não carregam a tempo, e têm pouca autonomia.

Em Loures, a Carris Metropolitana adjudicou uma série de autocarros eléctricos à CaetanoBus, com um contrato de milhões. Nada contra, a não ser o detalhe de que, por vezes, os veículos têm autonomia inferior a 150 km em condições reais. Portanto, os autocarros saem da central da Bobadela para fazer carreiras em Bucelas, e a regressar de reboque.

Já em Setúbal, a Alsa Todi, uma das operadoras espanholas que venceu os concursos da Carris Metropolitana, recebeu a sua frota eléctrica com pompa e circunstância. E sim, são bonitos, mas os carregadores da garagem só conseguiam alimentar metade da frota por noite. Como resultado, rotação de veículos, cancelamentos de horários e, claro, passageiros sem transporte.

A cereja no topo do bolo, o contrato milionário com a ABB para instalar super carregadores nas principais estações da AML. Valor? Cerca de 5 milhões de euros, só para garantir que os autocarros possam carregar em meia hora. Só que, a maioria das estações não tem capacidade de rede elétrica compatível. Ou seja, carregadores instalados, mas desligados. Uma espécie de escultura pública tecnológica.

E Lisboa? A Carris, pioneira no greenwashing institucional, lançou uma campanha para anunciar a sua "revolução eléctrica", mas os bastidores revelam outra história. As baterias de vários autocarros BYD adquiridos em 2019 começaram a perder capacidade já em 2023, e cada substituição ronda os 40 mil euros por veículo. Ninguém assume o erro. Afinal, a culpa é do clima, das subidas, ou do ascendente Marte sobre Sagitário.

Tudo isto seria cómico se não fosse pago com dinheiro público. Cada autarca quer a fotografia junto ao veículo eléctrico como se fosse uma selfie com Greta Thunberg. Mas quem fica sem transporte é o povo, sobretudo nas zonas periféricas onde o “transporte sustentável” se resume a esperar 45 minutos por um autocarro que nunca carregou a tempo.

Mas pronto, estamos a salvar o planeta. Desde que não se vá para o trabalho às 7 da manhã, nem se more, em Coina, Palhais, Penalva, Santo António da Charneca, ou no Alto do Seixalinho.

No Barreiro, o filme será igual, mas com sotaque local. Só falta escolher a rotunda onde se fará a fotografia de inauguração com o autocarro estacionado e o cabo de carregamento, desligado.

E no fim, a habitual cena do presidente da câmara a posar sorridente para a fotografia, ao lado do novo autocarro com painéis solares na pintura. O povo aplaude, afinal, é tudo para salvar o planeta, e os cidadãos que se lixem, enquanto isso, o velho autocarro a gasóleo ou gás, manchados e malcheirosos, olham de longe, e, como o presidente na inauguração, sorrirá também.

BARREIRO: OBRA ETERNA, COMÉRCIO FECHADO

Barba Azul, 22.04.25

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O Barreiro, tem-se transformado num espectáculo permanente, onde o palco principal é a Rua Miguel Bombarda, e os adereços principais são a máquina de alcatrão, o buraco com fita vermelha e a placa “Pedimos desculpa pelo incómodo”, que é o equivalente urbano a dizer, isto vai doer, mas é para o seu bem, enquanto lhe arrancam um dente sem anestesia e com um alicate ferrugento.

Se o Barreiro fosse uma série da Netflix, seria daquelas com enredo lento, produção cara, paisagem repetitiva e um argumento que insiste em ignorar metade do elenco. Os protagonistas, os projectos do centro da cidade, obras eternas, buracos com pedigree, estaleiros fossilizados no tempo, e claro, a promessa de estarmos a trabalhar nisso, o eterno refrão da governação local. As freguesias periféricas? Figurantes mal pagos e que em algumas situações nem aparecem nos prefácios.

Vamos por partes, como qualquer bom empreiteiro, que nunca termina, mas que nos enche de esperança...

No centro da cidade, o investimento público é como um bolo de noiva feito em gesso, bonito de longe, caro de perto e impossível de trincar. Começa-se a requalificação da Avenida da Liberdade com pompa, circunstância e muitas selfies políticas, mas quando a poeira assenta, o que fica é mais pó. As obras avançam ao ritmo de uma tartaruga asmática a subir a Rua Miguel Pais com um saco de cimento às costas.

A Rua Miguel Bombarda, ou A Terra Prometida, Que Nunca Chega, antigamente era uma rua onde o comércio florescia. Hoje é uma experiência sensorial, porque ter que passar por ali, é uma mistura de rally, escape room e testamento oral de comerciantes desesperados.

O cliente entra numa loja e o dono pergunta-lhe se está perdido ou veio mesmo comprar alguma coisa, é que com tanto tapume, tanto desvio e tanto barulho que a única coisa que entra são folhas de orçamento.

E o Barreiro Velho?, pelo andar da carroça, sim da carroça, porque de automóvel, não há pneu nem direção que aguente, parece-me que tem o destino marcado, vai Ficar Velho na Mesma.

27 milhões de euros para requalificar o centro histórico, o que parece até um bom investimento, mas só até se perceber que a principal requalificação até agora foi substituir a esperança dos moradores por ansiedade.

As ruas estão decoradas com gruas estacionadas, estaleiros de arquitectura pós-apocalíptica e um aroma de cimento fresco que dura há três anos.

O turismo cultural cresceu, agora vêm pessoas de fora só para ver quanto tempo uma obra consegue durar sem acabar. É o anunciado Turismo Industrial e de massas a bater-nos à porta. A industria á a da construção e as massas não se sabem onde de onde vêem, para onde vão e onde param.

As ruas Heliodoro Salgado e Instituto dos Ferroviários foram eleitas para se tornarem verdes, e estão a conseguir, mas é verdes de inveja das zonas onde já se andou para a frente e das ervas que crescem no pavimento.

A mobilidade foi requalificada no sentido grego do termo, ficou mitológica.

A rua ficou sem saída, o estacionamento desapareceu e os moradores fazem agora parte de um documentário da BBC chamado Sobreviver ao Urbanismo Experimental.

Na Avenida da Liberdade, a única liberdade, aqui, é sobretudo esperar. Podem esperar à vontade, mas sentados. Uma rotunda está a ser construída no acesso à estação dos barcos, rotunda essa que, à velocidade a que vai, estará pronta algures entre a canonização de Tony Carreira e o fim das obras na Segunda Circular.

Enquanto isso, o comércio ali floresce, mas tipo comércio do Império Romano, ou seja, só nas placas históricas.

As Freguesias do Restolho, que me desculpem os cidadão residentes e resistentes. Enquanto no centro do Barreiro se cria a cidade do futuro, que nunca chega ao presente, nas freguesias da periferia vive-se no passado.

Em Palhais, Coina, Lavradio e Santo António da Charneca, as intervenções da Câmara fazem-se com a subtileza de um suspiro, não se vêem, não se ouvem, não se sentem.

Estes locais servem essencialmente para o exercício democrático de votar e pagar impostos. Em troca, recebem uma lomba mal feita, uma paragem de autocarro ao estilo soviético e um vamos estudar o assunto, dito com a mesma convicção de um adolescente a prometer que vai arrumar o quarto.

Se alguém em Santo António da Charneca, Coina, Palhais ou Lavradio ousar perguntar por um investimento, uma praça reabilitada, um centro de juventude, uma lomba bem feita, leva logo com aquele olhar institucional de quem acabou de ouvir um extraterrestre pedir um cappuccino em latim. Investimento para freguesias? Ahhh, isso é com o próximo executivo…

Santo António da Charneca, por exemplo, é o Dubai da marginalização, grande, populoso, com potencial… mas onde nem uma rotunda floresce, nem um buraco se tapa. Aliás, há mais probabilidade de se descobrir petróleo na Rua do Casal do Marco do que de ver um plano urbanístico a ser cumprido a tempo e horas. A única coisa que chega rápido por lá é o boletim de voto, e mesmo esse, às vezes, em papel reciclado.

Coina e Palhais, uma União de freguesias que vivem num estado de suspense, como personagens secundários à espera que o guionista dê pela sua existência. O último investimento digno desse nome foi uma passadeira pintada em 2008, que hoje mais parece uma instalação de arte abstrata sobre o tema “abandono”. Os moradores vivem num paradoxo político, contribuem como cidadãos de primeira, e têm o retorno como fregueses de terceira.

O Lavradio onde o tempo passa mas o progresso não chega, tem tudo para ser uma freguesia dinâmica, população jovem, localização estratégica, comércio activo, e no entanto, tudo o que é público parece privado de atenção. O Lavradio é como aquele primo esperto que toda a gente ignora na ceia de Natal, pois até a cultura foi despejada dali com a subtileza de um despejo às três da manhã. Onde antes havia vida, agora resume-se a mais um PowerPoint.

No Barreiro, o tempo passa, mas as obras não, e os comerciantes sobrevivem entre o entulho e as promessas eleitorais, com os cidadãos a praticarem slalom olímpico entre estacas e cones.

E os autarcas? Esses continuam, como sempre, a 3 meses de nova campanha, sempre prontos a inaugurar o início de mais uma obra, que será interrompida por outra obra, que atrasará a conclusão da anterior, e assim por diante até à conclusão, mas do PowerPoint. É uma apresentação gráfica, com música, beberete e direito a festa, mas que no fim deixa a barriga vazia.

Entretanto, no centro da cidade, há requalificação atrás de requalificação. Ainda não acabaram uma rotunda e já estão a anunciar o embelezamento do passeio em frente. É o efeito “Barreiro Central Resort”, estaleiros com vista para o rio, empedrados com personalidade própria (cada pedra tem vontade própria e tropeça-se com todas) e bancos de jardim onde ninguém se senta porque ainda cheiram a cimento fresco, desde 2021.

O Barreiro está destinado a ficar eternamente, como a cidade do futuro, só que sempre a três anos de distância, tal como os salários justos.... os transportes a horas...... e os pagamentos da dívida bancária da Câmara.

Na verdade, o Barreiro, tal como está gerido, parece uma maqueta inacabada de uma cidade que só existe para turistas que nunca cá vêm. Enquanto isso, as freguesias vivem na sombra de uma centralidade que chupa tudo, dinheiro, atenção, promessas, e paciência dos contribuintes.

O resto do concelho que espere, preferencialmente sentado. Se puder puder pagar, pode esperar na esplanada do Mercado, onde polulam as elites políticas da terra, se não puder, vá saltando nas poças da chuva, como as criancinhas que eles pensam que somos.

Francisco Mário Bergoglio, um Homem sem medo

O Impacto Político da Morte de um Papa do bem.

Barba Azul, 21.04.25

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A morte de Francisco não é apenas um acontecimento eclesiástico, é uma convulsão política à escala global. A sua ausência física, deixa um vazio perigoso num tabuleiro onde a Igreja Católica, apesar do seu declínio numérico no Ocidente, ainda exerce um papel de bastidor crucial em temas tão sensíveis quanto a migração, pobreza, conflitos armados, mudanças climáticas e direitos humanos, e, no caso específico português, na actividade social das Misericórdias.

Francisco foi, para muitos, a última grande autoridade moral com ressonância planetária. Um chefe de Estado que recusava blindagens, um diplomata que preferia o encontro à denúncia, mas que não hesitava em condenar, com nomes e sem eufemismos, os nacionalismos fechados, o fundamentalismo económico e o autoritarismo disfarçado de ordem.

Morre um Papa, e tremem os corredores da ONU, da União Europeia, das Américas e das igrejas locais que viam nele um ponto de equilíbrio entre a tradição e o progresso, entre a ortodoxia e o risco de transformação.

Na Cúria Romana, à sua morte, iniciam-se de imediato, jogos de sombras. Os sectores mais conservadores, que durante anos se limitaram a conter a sua frustração, veem agora uma oportunidade de restaurar um Vaticano mais contido, menos politizado, mais obediente às estruturas internas. Os progressistas, órfãos de um líder que lhes dava voz sem necessariamente satisfazer todos os desejos, tentam evitar o retrocesso.

O conclave que se aproxima será um dos mais politicamente carregados das últimas décadas. O sucessor de Francisco não herdará apenas uma tiara simbólica, mas uma herança incendiária, a de um Papa que mexeu nas feridas sem as fechar, que denunciou poderes sem os destruir, que apontou caminhos sem os pavimentar. A escolha do novo pontífice será observada com a mesma atenção de uma eleição presidencial, com lobbies silenciosos, alianças entre cardeais e pressões diplomáticas discretas.

Fora dos muros do Vaticano, líderes políticos, especialmente na América Latina e no sul global, perdem um aliado incómodo mas respeitado. Na Europa, Francisco foi uma das poucas figuras a recordar que a alma do continente não se constrói apenas com PIB e a segurança. Nos EUA, a sua postura crítica em relação ao capitalismo desregulado e à corrida desenfreada ao armamento, irritava tanto como obrigava à reflexão.

A sua morte é, portanto, mais do que o fim de um pontificado. É uma pergunta lançada ao mundo, sem Francisco. Quem, após o seu desaparecimento, nos recordará, com autoridade e ternura, que a dignidade humana não é negociável?

E agora, após a sua morte, qual será o caminho e a Estratégia na Luta pelo Futuro da Igreja?
Os olhos do mundo convergem agora para a Capela Sistina, onde o conclave se irá preparar para escolher, não apenas o próximo Papa, mas a direção espiritual e política da Igreja Católica num século em disputa e convulsão. Por trás dos rituais solenes, dos incensos e dos cânticos em latim, desenrola-se uma batalha estratégica entre facções que há anos se preparam para este momento.

Para os chamados restauracionistas, esta é há muito, a oportunidade aguardada para corrigir o rumo iniciado por João XXIII, continuado e reavivado por Francisco. Estes cardeais desejam uma Igreja mais disciplinada, menos permeável ao zeitgeist moderno e mais alinhada com a doutrina rígida de Bento XVI. Nomes como o Cardeal Raymond Burke, apesar da idade e controvérsias, e figuras afins a ele, promovem discretamente o italiano Cardeal Matteo Zuppi como compromisso, embora Zuppi, curiosamente, seja mais centrista e pastoral.

Mas outro nome que emerge com força neste bloco é o do africano Cardeal Robert Sarah, homem discreto, ascético, de linguagem tradicional e respeitado entre os conservadores litúrgicos. A sua eleição seria um sinal de retração e uma ruptura com o estilo pastoral de Francisco.

Por outro lado, os cardeais criados por Francisco, maioria no colégio eleitoral, querem consolidar o seu legado, embora nem todos concordem com todos os seus métodos. A candidatura mais simbólica neste campo, destaca-se o filipino Cardeal Luiz Antonio Tagle, carismático, com visão global, e já posicionado no coração da máquina curial, porém, a sua ligação explícita a Francisco pode torná-lo um alvo fácil dos conservadores.

Outra possibilidade, mais centrista, é o canadiano Cardeal Marc Ouellet, que goza de simpatias em ambos os campos e tem experiência diplomática, embora o seu envolvimento em investigações de abusos possa pesar contra.

A morte de um Papa latino-americano reacende o debate sobre a representação do Sul Global, pois a força demográfica e espiritual da Igreja já não está na Europa. Um Papa africano ou asiático daria um sinal forte de descentralização, daí correr pelos corredores, o nome do Cardeal Peter Turkson, do Gana, continua a circular, embora seja visto como demasiado tecnocrático. Outros cardeais latino-americanos, como o hondurenho Oscar Maradiaga, estão manchados por escândalos ou pela idade.

Como sempre, o conclave pode surpreender, com um outsider italiano de perfil pastoral, como o Cardeal Giuseppe Betori, ou uma figura quase desconhecida da Europa de Leste ou do sudeste asiático, pode emergir como solução de compromisso, sobretudo se os primeiros escrutínios revelarem um impasse entre os dois blocos.

O próximo Papa será escolhido num cenário de fragmentação interna, pressão externa e de uma necessidade quase existencial. A escolha não será neutra, será uma resposta à pergunta, se a Igreja irá seguir adiante com as feridas abertas por Francisco, ou voltará a fechá-las com suturas ainda mais apertadas?

Nuno Melo, o Farol da Coerência Nacional

Barba Azul, 21.04.25

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Nuno Melo, esse farol da coerência nacional, esse titã do conservadorismo reciclado, que consegue a proeza de parecer simultaneamente um político do século XIX e um influencer do Facebook de 2012. É quase comovente ver o esforço com que tenta ressuscitar o CDS, como quem tenta insuflar vida num frango de churrasco que já passou três domingos no tabuleiro.

Nuno Melo, com o seu tom inflamado e pose de estadista em miniatura, é um verdadeiro monumento à retórica indignada sem consequências. Fala como se liderasse um exército ideológico em marcha triunfal, quando na realidade comanda uma brigada de fantasmas, o CDS, esse partido que já foi relevante, mas que hoje caberia confortavelmente num táxi, com motorista e tudo.

Nuno Melo, o eterno aspirante a relevante, iniciou a sua carreira política com um perfil de bom aluno da direita tradicional, advogado de formação, verbo afiado, bom de soundbite e com um ar constantemente entre o indignado e o paternalista. Subiu nas fileiras do CDS com uma facilidade proporcional à escassez de concorrência, afinal, num partido onde a juventude é tratada como uma ameaça e o futuro como uma inconveniência, bastava parecer sério e usar gravata ao domingo.

Foi deputado na Assembleia da República, onde se destacou por ser um dos mais vocais defensores do estilo português de bem, sempre pronto a criticar o estado da justiça, a moral da sociedade e a deriva dos costumes, tudo isto enquanto contribuía para uma produção legislativa quase decorativa. Era mais conhecido por intervir do que por concretizar, colocando a forma sempre à frente do conteúdo.

Mas o verdadeiro brilho de Nuno Melo surgiu, quando foi para o Parlamento Europeu. Aí, Nuno tornou-se uma espécie de turista político com cartão de embarque permanente, entre Bruxelas e Estrasburgo. Dedicou-se à nobre arte da denúncia sem consequências, da afirmação sem responsabilidade, e do voto sem impacto. Teve destaque mediático, não pelas ideias, mas pelas indignações bem cronometradas para os telejornais das 20 horas.

Foi um dos mais entusiastas apoiantes da chamada justiça popular mediática, durante o processo Casa Pia, vestindo a capa de defensor da moral pública, com uma ligeireza que dir-se-ia imprópria para um jurista.Transformou a política num palco, e a ele próprio num personagem mediático, só que, como tantas personagens da política portuguesa, não passou nas audições e ficou-se pelo primeiro acto.

Durante anos, foi o rosto jovem do CDS, uma juventude que já dava sinais de cansaço no início da década de 2010. Enquanto o partido encolhia como um balão furado, Melo mantinha-se firme na arte da sobrevivência partidária, sabendo sempre quando dar um passo atrás, quando alinhar com o PSD e, acima de tudo, dissimuladamente, desaparecer para reaparecer com novo verniz.

O auge da ironia foi atingido quando assumiu a presidência do CDS, já o partido tinha sido reduzido a entulho eleitoral. Melo herdou um navio naufragado e decidiu, com o heroísmo de um marinheiro de água doce, pintar-lhe as velas. Desde então, dedicou-se a proclamar o renascimento de um partido que ninguém quer nem deseja ressuscitar. Em vez de refundar o CDS, reformulou-o como sucursal decorativa do PSD, pronto a apoiar, servir e obedecer em troca de meia dúzia de lugares e migalhas de protagonismo. Ou seja, uma oportuna muleta política, sim, mas das que só servem para tropeçar.

No plano ideológico, Nuno Melo é um entusiasta de tudo o que parece sólido, moralista e conservador, desde que não interfira com as alianças práticas necessárias à sua sobrevivência política. É contra o populismo, mas rouba-lhe os truques retóricos. É a favor da democracia, mas desesperado por atenção mediática a qualquer custo. É defensor de princípios, mas sempre os suficientemente vagos para não o comprometer com nada.

Nuno Melo, nomeado ministro da Defesa, é, em si, algo de trágico e cómico, como se alguém tivesse nomeado o maestro de um conjunto filarmónico para comandar um submarino nuclear. Mas lá está ele, engravatado, de queixo erguido, a discursar sobre geoestratégia com a convicção de quem acabou de descobrir o mapa mundo.

Desde que tomou posse, Melo mostrou-se um verdadeiro ministro performativo, com muitos gestos, muitas palavras, muitas visitas a quartéis, mas quanto a decisões, zero. Não lidera a Defesa Nacional, o seu ministério é um desfile de solenidades, onde cada farda é um adereço e cada cerimónia, um episódio da sua telenovela pessoal, O Último Conservador.

Na prática, o que fez?
Prometeu reforçar as Forças Armadas, mas não explicou como. Talvez com discursos motivacionais e fotografias no X/Twitter.

Falou em prestígio internacional, mas, curiosamente, Portugal continua tão irrelevante na NATO quanto antes, excepto quando é preciso cumprir cotas ou aplaudir os grandes.

Anunciou reformas estruturais, mas até agora só reformou a linguagem, chama revalorização logística à falta de munições e racionalização de meios à ausência de navios operacionais.

Melo trata a Defesa como se fosse um palco para a sua fantasia de estadista militar, acena com conceitos como soberania, autonomia estratégica e esforço nacional, com a segurança de quem os leu na contracapa de um relatório da UE, e os repete como se os tivesse inventado.

Nos bastidores, a tropa suspira. Os oficiais superiores, discretamente, percebem que o ministro está mais preocupado com a imagem do que com a eficácia. E os soldados? Esses continuam mal pagos, mal equipados e mal representados, mas agora com a honra de serem ignorados por alguém que se diz o seu maior defensor.

O mais irónico disto tudo, é que Nuno Melo adora a pompa das cerimónias militares, mas é completamente alérgico à logística, à modernização, e à diplomacia multilateral que exige trabalho real. No fundo, confunde Defesa com desfiles.

Nuno Melo no Ministério da Defesa é como uma espada de cerimónia, brilha ao longe, impressiona os incautos, mas não serve para lutar.

É o ministro ideal para quem quer parecer patriota sem sujar as mãos. Um general sem exército, um comandante sem estratégia, um conservador sem causa, apenas com pose.

A carreira de Nuno Melo é o retrato perfeito da política do ornamento, sempre presente, raramente útil, com muito som mas pouco sentido. Um político que fala alto para que não se repare que não tem seguidores, que finge liderança para disfarçar a ausência de direção, e que insiste em representar um partido que só ainda existe porque ninguém o declarou oficialmente morto.

Se há coerência na sua trajectória, é a capacidade de sobreviver politicamente, num país que já deixou de contar com ele para o que quer que seja.

Cultura no Barreiro (2018-2025) Versão 2.0

Entrevista Fictícia - Segunda Parte

Barba Azul, 19.04.25

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O prometido é devido, por isso, deixo na íntegra, uma suposta e promissora.... entrevista, exclusiva, com dois alegados autarcas anónimos, que poderiam ser, por exemplo, do Barreiro.

Conduzida por um cidadão com equiparação a jornalista, cujas perguntas afiadas, obtiveram dos entrevistados, respostas à altura do vazio cultural que construíram, com mão firme e espírito PowerPoint.

Entrevista Fictícia Exclusiva, “Sete Anos de Cultura, Entre a Visão e a Tenda de Arraial."

Entrevistador: Manuel Francisco Alinhado ( Equiparado a jornalista )
Revista "Eventos & Eufemismos"
Data: Abril de 2025
Local: Sala Polivalente do Edifício-Sombra da Cultura numa tarde culturalmente solarenga a ameaçar chuva. Para efeitos de preservar o anonimato dos entrevistados, os mesmos, serão apenas designados por pares de iniciais aleatórios.

MFA: Boa tarde, Sra. SF e Sr. RB. Antes de mais, parabéns por este extraordinário ciclo de governação cultural tão consistente. O que vos inspira a manter este registo?

SF: Obrigada, Manuel. A nossa política cultural baseia-se num princípio simples. Se não houver expectativas, não há desilusões. Trabalhámos muito para garantir que ninguém esperasse grande coisa, e penso que cumprimos plenamente.

RB: Gostaria de realçar e acrescentaria às palavras da minha colega, que o silêncio também é cultura. E, nesse aspecto, temos salas absolutamente cheias de silêncio. Foi uma aposta ganha.

MFA: Foram anos com muitos eventos, festas de verão, mercados de Natal, insufláveis, etc... Nesta rica panóplia de eventos, onde entra a cultura?

SF: Oh, a cultura está em tudo, Manuel. Está no palco onde o cover dos Xutos tocou. Está na sardinha assada com sotaque. Está na actuação do grupo folclórico às 17h e no DJ com pen USB às 23h. Cultura popular é cultura também. E a alta cultura? Bem, essa, está a descansar.

RB: Acrescentaria, porque acho da maior importância, a descentralização. Por isso levámos cultura a sítios onde nunca esteve, e continuou sem estar. Mas o importante é que fomos lá.

MFA: O Barreiro Rocks, a OUT.RA, o Teatro Municipal, houve críticas quanto à falta de apoio efectivo. Como respondem a essas acusações?

SF: Demos todo o apoio que era possível dar, sem comprometer o orçamento das iluminações de Natal, claro. Temos prioridades. E o povo é de luzes que gosta. Luzes são cultura, desde que não sejam luzes de emergência.

RB: Além disso, apoiámos simbolicamente com a nossa presença, às vezes até sorrimos para a foto ou vídeo. E isso, para um artista, vale ouro. Já dizia o Picasso, "um aceno de vereador vale mais do que mil euros em co-produção".

MFA: E quanto ao Plano Estratégico para a Cultura?

SF: Foi um documento inovador. Criado, apresentado, e arquivado com muito rigor. Está disponível online, algures, entre as Actas da Câmara e os avisos de interrupção no fornecimento da água.

RB: Estamos em 2025. Já é altura de rever o plano. Talvez mudemos a fonte no Word. Modernizar é preciso.

MFA: Para terminar, que legado deixam à Cultura na nossa terra?

SF: Deixamos um Barreiro mais leve, sem o peso das exigências culturais. Um Barreiro onde a cultura respira com máscara, de preferência, para não contagiar ninguém com ideias.

RB: E deixamos sobretudo uma cultura segura. Onde nada muda, ninguém arrisca e todos saem da zona de conforto, exactamente onde estavam quando chegámos.

O Entrevistador desliga o gravador, agradece e recebe um folheto do próximo evento municipal, Noite do Rancho com DJ Litos, com entrada livre e cultura opcional.

(Esta entrevista é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade, é mais do que pura coincidência).

Cultura no Barreiro (2018-2025) Versão 1.0

Um Espectáculo de Invisibilidade - Primeira Parte

Barba Azul, 19.04.25

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Entre 2018 e 2025, a área da cultura na Câmara Municipal do Barreiro teve uma performance tão notável que passou completamente despercebida, o que, como todos sabemos, é o objectivo supremo da arte, não incomodar ninguém. E nisso, meus amigos, o município foi exemplar.

Sob a batuta de visionários que, segundo consta, já ouviram falar de um livro uma vez, o Barreiro avançou decidido para um conceito revolucionário, cultura sem conteúdo. Trata-se de um novo paradigma em que se fazem eventos, mas sem substância, programas culturais, mas sem cultura e festas, muitas festas, porque música alta e cerveja barata é, como todos sabemos, o novo cânone estético ocidental.

No centro desta performance, dois nomes sobem ao palco, Rui Braga, o "homem dos palcos sem peças", e Sara Ferreira, a vereadora que tratou o pelouro da Cultura com a mesma paixão que um contabilista tem por uma peça de teatro pós-dramática, confusão, distância e uma vontade imensa de sair antes do intervalo.

Sara Ferreira herdou o pelouro e logo o transformou numa sala de espera do SNS. Filas, expectativas frustradas e uma sensação generalizada de abandono. A sua visão para a cultura era clara, desde que não implicasse apoiar artistas, desenvolver equipamentos ou, Deus nos livre, ter uma estratégia. O que interessava eram "momentos", "dinâmicas" e "sinergias", todos conceitos que, na prática, significavam o mesmo, mais uma tenda branca com música pimba e carrosséis para agradar ao eleitorado nostálgico dos anos 90.

Rui Braga, sempre por perto, preferiu continuar a ser o comissário da apatia cultural. E entre os dois, como uma dupla cómica involuntária, foi-se apagando lentamente o que ainda restava de ambição artística no concelho.

Teatro? Sim, claro, mas apenas aquele interpretado nas reuniões de câmara, onde se aplaude de pé a ausência de ideias. Apoio às associações culturais? Houve, claro, desde que não pedissem muito, nem fizessem muito ruído, nem tivessem ambições artísticas acima de um rancho folclórico com um powerbank.

A cereja em cima do pastel de nata com prazo expirado foi a gloriosa programação anual, meticulosamente copiada do ano anterior, que por sua vez já tinha sido reciclada do tempo em que a cultura local consistia em pôr o Tony Carreira num palco com luzes. Mas com um cartaz novo, porque design gráfico é cultura, segundo a secção de juventude da junta de freguesia.

Aliás, é injusto dizer que nada se fez. Fez-se, e muito! Fez-se o favor de não mexer em nada, para que a cultura continuasse a ser uma coisa inofensiva, segura, previsível e, sobretudo, absolutamente irrelevante. E isso, meus caros, exige talento, e muito acreditem, um talento tão grande que só mesmo com o apoio dos cofres públicos consegue-se manter.

Em suma, o Barreiro entre 2018 e 2025 não teve uma política cultural, teve uma performance conceptual de ausência. E que performance! Brilhante, silenciosa, e, tal como o público nos eventos, quase sempre vazia.

Entretanto e para aumentar a percepção, palavra em voga nas entrevistas e debates, publicarei, numa II parte, uma amostra, do meu ponto de vista, do que seria uma entrevista de um moderador barreirense convencido, com os vereadores Sara Ferreira e o mestre de sala e Vice-presidente da Câmara Municipal do Barreiro, Rui Braga.