Mais um Milagre Barreirense
Bairro Alves Redol, o Modelo do Reboco e do Remendo
Senhoras e senhores, preparem o coração para uma história comovente sobre amor, anunciada a 01 de Maio de 2023, com retroatividade a 2017.
Amor à cidade? Não. Amor às pessoas? Menos. Digamos, antes: amor ao orçamento da UE? Exacto.
Foi no longínquo 10 de outubro de 2024, uma data que ficará para sempre gravada nas lápides da propaganda autárquica, que arrancou a gloriosa reabilitação dos 92 fogos do Bairro Alves Redol.
Um investimento de 4,4 milhões de euros, tão sonante quanto a promessa de que “ninguém seria deixado para trás”.
A frase, aliás, foi dita com o mesmo tom messiânico com que se inaugurou a Fonte Luminosa da Avenida da Praia em 2019, antes que a água voltasse a desaparecer… como os técnicos responsáveis.
Frederico Rosa, presidente e apóstolo da regeneração urbana, falou com ar compungido de um bairro “envelhecido e obsoleto”. Estranho, vindo de alguém que ignorou o mesmo bairro durante sete anos consecutivos enquanto financiava, sem parcimónia, a reinvenção da zona ribeirinha da Avenida Bento Gonçalves, onde entre food trucks e concertos com cachets generosos, se aplicou mais entusiasmo do que cimento.
E como esquecer o Festival Out.Fest, com milhares investidos em artistas sonoros experimentais que tocavam para gatos e sombras no AMAC, enquanto os moradores do Alves Redol assistiam à derrocada dos estores e das infiltrações. A cultura foi prioritária, sim, mas apenas nas zonas onde havia lugar para palcos e reportagem na RTP2.
Agora, de repente, os mesmos que sempre evitaram passar na Rua Alfredo Cunha de noite, e de dia também, sejamos honestos, descobriram o valor estratégico do Bairro Alves Redol.
O PRR dá dinheiro, e dá jeito, ainda mais quando se pode dizer que se compraram “mais de três dezenas de casas”.
Onde, em que condições, a quem? Silêncio. Mas talvez tenha sido no mesmo espírito transparente com que se adjudicou, sem concurso público, a montagem dos toldos natalícios da Baixa em 2022 àquela empresa que, curiosamente, também decorou o casamento de um conhecido assessor.
Mas comecemos pelo princípio desta história.
O Bairro Alves Redol ia ser regenerado! Isso mesmo, em 2017 a CDU lá conseguiu uns trocos do PEDU, um daqueles programas europeus com nomes que parecem passwords de Wi-Fi, para dar uma nova vida ao bairro.
Casas mais dignas, espaços públicos decentes, uma urbanização com orgulho, enfim, um cenário que faria o Álvaro Siza chorar de emoção.
Mas depois, após os preliminares, houve eleições, e veio o PS, e trouxe uma coisa mais bonita que urbanismo, chamado visão estratégica!
Vamos regenerar? Claro que sim. Mas, e se antes, desviássemos este dinheirinho para requalificar espaços que nem sequer são nossos? É que investir em propriedade alheia é outra loiça!, terá dito alguém entre dois cafés e um power point, e lá se foi a regeneração do bairro.
Mas atenção, nada foi abandonado. Foi apenas “reformulado”. Sabem quando nos dizem que o autocarro não foi cancelado, só não vem hoje? Pronto, é isso.
A CDU esperneou, acusou, gritou "realojamento" e "abandono", e o PS, com a calma de um padre a benzer cimento fresco, respondeu, estamos a evitar deslocar 37 famílias, claro porque nada diz “apoio social” como deixar as famílias no mesmo prédio a cair aos bocados, mas com dignidade!
E os 4,4 milhões de euros da nova empreitada? Foram lançados num concurso público, sim senhor. Tudo certinho, no Diário da República, onde as grandes jogadas urbanísticas são para adornar o sono dos justos. Mas claro, “transparente” como um vidro fosco com três dedadas e um autocolante a dizer “adjudicado a quem for mais amigo”.
Sim, é claro que não houve interesses obscuros! Ninguém sonharia em mexer num concurso de reabilitação urbana num bairro social! Que horror! Isso só acontece em países corrompidos, longe deste oásis ético chamado Barreiro.
Mas a culpa não é só do PS, nem da CDU, nem da Câmara, a culpa é nossa, porque deixamos que nos troquem regeneração por propaganda, betão por promessas, e bairros por power points com renderizações 3D.
E eis que, senão, assistimos a um milagre no Barreiro! O Bairro Alves Redol, que durante anos, décadas, foi tratado como aquele parente incómodo que só se convida para o Natal porque é obrigatório, está finalmente a levar com obras! Sim, obras de verdade! Com capacetes, cimento, fita vermelha e tudo.
Um dos blocos até já está pronto! Concluído! Feito! Um autêntico monumento à resiliência, não dos moradores, claro, mas da capacidade do PS em apresentar uma fachada nova a tempo das eleições. Porque, como todos sabemos, regenerar é bom, mas regenerar no momento certo, visivelmente é ainda melhor.
Mas agora há blocos a brilhar.
Literalmente.
Com tinta fresca.
E selfies com os vereadores.
Portanto, celebremos!
Temos um bairro que era para ser todo recuperado, depois não era, depois era outra vez, e agora está a ser aos bocadinhos. Um bocadinho por legislatura, um bloco por mandato, um andar por promessa.
Agora, sim, diz o PS, porque antes era abandono, agora, transformou -se num palco de reabilitação urbana com cobertura mediática garantida. Aliás, dizem que o segundo bloco já está a caminho, o que, à velocidade da administração local, significa que estará pronto mais ou menos quando Portugal ganhar o Mundial de Futebol.
Mas cuidado com o cinismo, porque há que aplaudir, temos um bloco recuperado em 2025, o que é uma vitória colossal, para um projecto iniciado em 2017! É como entregar um trabalho da faculdade com oito anos de atraso e receber um elogio do reitor por “persistência”.
E quem sabe, se tudo correr bem, em 2040, os netos dos actuais moradores talvez já vivam em casas dignas. Com sorte até já terão uma paragem de autocarro com sombra. E uma placa a dizer:
“Obra iniciada em 2017, retomada em 2023, concluída… um dia.”
E assim se fez o milagre. Primeiro esqueceu-se o bairro. Depois iniciou-se a reabilitação com muito ruído, e por fim... vende-se o silêncio.